O pirarucu ameaça rios em três países da América do Sul — Foto: Léo Ramos Chaves / Pesquisa FAPESP
Como seria se um leão, espécie nativa da África, vivesse solto nas florestas brasileiras? Seria possível calcular o tamanho do “impacto”? Algo semelhante acontece em rios de três países da América do Sul.
Pesquisadores e pescadores acompanham na prática os danos que o pirarucu (Arapaima gigas), predador de topo da cadeia alimentar, vem causando há pelo menos 50 anos em regiões onde ele não existia.
“Nas invasões biológicas, quando você retira a espécie de um lugar de origem e coloca em outro rio em que ela não evoluiu com outros seres, há uma certa ingenuidade da presa nativa nos primeiros anos”, explica o pesquisador Jean Vitule, do Laboratório de Ecologia e Conservação da Universidade Federal do Paraná.
Ele continua: “É que a presa não reconhece o invasor como um predador, porque evolutivamente essa espécie não existia na vida dela. É lógico, com o tempo os peixes nativos podem aprender, mas até isso acontecer o pirarucu pode extinguir localmente várias espécies de presas. Por isso, ecologicamente essas invasões são tão arriscadas”, diz.
O pirarucu também é conhecido por arapaima, ou, paiche, nome mais comum no Peru, país onde começou uma “invasão” que atravessou fronteiras.
Apesar de ser um peixe nativo da bacia Amazônica, o paiche não está presente em todos rios da Amazônia, ou, pelo menos não deveria estar."
A espécie é nativa, por exemplo, em Iquitos, capital da “Amazônia Peruana”, cidade que fica localizada nas grandes planícies da Bacia Amazônica, a leste dos Andes. Com cerca de 465 mil moradores, o município é conhecido por ser a maior localidade do mundo em número de habitantes onde não se pode chegar por terra, somente com avião, ou barco.
A dificuldade de acesso até a cidade não foi obstáculo para retirar paiches dos rios da região e transportá-los por mais de mil quilômetros até a região Sudeste do Peru. Por volta de 1975, esses peixes foram introduzidos em criadores conservacionistas localizados na cidade de Puerto Maldonado, que fica só há 55 quilômetros da fronteira com a Bolívia.
A cidade é capital do Departamento que leva o nome do rio Madre de Dios, curso d’água que se junta com o rio Madeira e se torna um afluente do rio Amazonas. “Descobrimos que os primeiros indivíduos da espécie foram trazidos intencionalmente de Iquitos e foram deliberadamente soltos nas lagoas de Sandoval e Valência. A partir desses dois pontos houve uma expansão constante da espécie em direção ao rio Madre de Dios”, explica o pesquisador boliviano, Guido Miranda, da Wildlife Conservation Society, WCS. A instituição de conservação e investigação da biodiversidade estuda há décadas um dos maiores casos de introdução de “peixes exóticos” na América do Sul.
Não se sabe muito bem ao certo de que forma os paiches foram parar em ambiente natural, mas relatos dão conta que por volta de 1976, em Puerto Maldonado, houve escapes de criadores conservacionistas. “Devido à dinâmica dos rios, os paiches se dispersaram ao longo do rio Madre de Dios, invadindo córregos e lagos bolivianos”, explica Miranda.
Sem predador natural, o voraz paiche afetou espécies nativas da Bolívia. “Mostramos isso em um estudo que fizemos na lagoa Tumichucua, onde embora o número de espécies não tenha diminuído, a composição dos peixes mudou substancialmente, produzindo modificações nas guildas (conjunto de espécies que utilizam o mesmo recurso) de peixes dominantes. O impacto varia dependendo do tamanho do rio, ou, da lagoa”, explica Miranda.
Autoridades bolivianas demoraram para criar medidas que permitissem o controle dessa invasão. Por isso, o paiche se espalhou de tal forma que hoje a espécie é a mais importante na pesca comercial da Bolívia. “Nesses casos de invasões ocorre um fenômeno chamado de ‘naturalização da espécie’, ou seja, os pescadores e a sociedade já consideram o ‘invasor’ como parte do meio ambiente e foi o que aconteceu aqui com relação ao paiche”, conclui Miranda.
A pesca boliviana era baseada em espécies nativas, mas o impacto dessa invasão biológica foi tão grande que o comércio de pescado no país mudou radicalmente. Hoje em dia a Bolívia até exporta a carne do paiche.
“A espécie passou a dominar o ambiente. Nessa região do Rio Madeira, não existia pirarucu porque havia corredeiras. Com a instalação de uma hidrelétrica, a paisagem mudou e o local se transformou em lugar de água parada, virou um grande lago, ambiente propício para a espécie. Hoje em dia, nessa área existem grandes populações de pirarucu que sustentam a pesca comercial. Mas isso é arriscado e preocupante porque essa espécie exótica pode acabar com o peixe nativo e a gente não sabe até quando um peixe desse porte vai se sustentar”, comenta o pesquisador Jean Vitule.
O especialista em invasões biológicas aquáticas da Universidade Federal do Paraná é crítico à “naturalização da espécie” em ambientes onde pirarucu não existia. “Eu particularmente acho perigoso, porque a espécie pode ter sido aceita por parte da comunidade local, mas, e os pescadores que sobreviviam das espécies nativas? Já ouvi relatos de indígenas que não gostam do pirarucu, porque é um peixe que acaba predando espécies menores como por exemplo, matrinxã e apapa. Era com esses peixes que essas comunidades se alimentavam antes da introdução do pirarucu”, conclui Vitule.
No estado de Rondônia, o pirarucu é uma espécie nativa somente na região próxima à capital, Porto Velho, porém, nas últimas décadas se espalhou pela bacia do rio Guaporé.
Uma das hipóteses é que os peixes que escaparam do Peru foram parar em Rondônia. “O pirarucu veio e se dispersou pela Bolívia em um processo que levou cerca de 30 anos até que a espécie conseguisse entrar na bacia do rio Mamoré e chegasse até uma parte a montante do rio Madeira”, explica a pesquisadora Carolina Doria, doutora em Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal de Rondônia (Unir).
Com testes em laboratório, pesquisadores descobriram a origem de parte desses peixes que invadiram os rios de Rondônia. “Usando ferramentas de análises genéticas e cruzando com informações de um banco com dados de várias regiões da Amazônia, observamos que os peixes que estavam aqui, eram mais próximos geneticamente dos exemplares nativos do Peru”, explica a pesquisadora.
Além dos pirarucus que vieram do Peru, estudos também identificaram no rio Madeira, peixes que foram parar em ambiente natural por causa de escapes em criadores de Rondônia.
Para tentar conter essa ameaça no estado, a legislação foi alterada e um projeto de manejo do pirarucu foi implementado com ajuda de pescadores locais.
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